11 setembro 2014

Arely A Mensageira - Capítulo 5: Sentir

Ruby fuzilou Adrien com os olhos cinzentos, ao que o Lycan apenas ergueu uma sobrancelha. Uma filhote querendo lhe fazer frente?

— Eu já te vi. No quadro do escritório do pai. – franziu as sobrancelhas, olhando-o, desconfiada. Então, ela era filha de Alexei? Provavelmente, a caçula. Longe de ser a Beta e nem sonhando em saber seu nome. – Por que quer se aproximar de Arely?

Foi a vez dele franzir as sobrancelhas, observando-a atentamente, como que procurando algo no fundo de seus olhos.

Como ela sabia? Nenhum Lycan, ainda mais um filhote, conseguiria adivinhar suas intenções com apenas uma ação. Ah, tinha mais dentro daquela cabeça ruiva, tinha certeza.

— Como você sabe? – a voz estava calma, baixa e rouca, os olhos brilhando perigosamente. Ruby sentiu um arrepio, enquanto pensava que ele nada fizera para ocultar suas intenções: não negara que tentava se aproximar de Arely nem nada assim. Apenas perguntara como ela sabia.

De algum jeito, tinha certeza de que ele não lhe faria mal, mas ainda assim, sentiu medo do que ele era capaz. Estava na frequência de seu espírito que ele era velho. Muito velho. Lycans não viviam tanto. Vampiros, Bruxos e Drachens, sim... Mas Lycans, não.

— Eu... Eu... Senti, assim como senti que devia me aproximar dela. – murmurou, recuando um passo. Os olhos de bronze líquido relampejaram com algo... Esperança, foi isso que ela viu?

Sentiu? Sentiu? Ela estava falando de sexto sentido. E Lycans não possuíam sexto sentido, algo diferente de puro instinto para eles. Sexto sentido era quase inútil para aqueles predadores perfeitos. E ela sabia disso. Sabia que não era uma Lycan comum, ou não falaria com tanta relutância.

Sexto sentido fazia parte do dom. Do dom que a Catedral dava aos seus escolhidos.

E há quarenta anos que um Lycan com o dom não surgia.

— Você tem o dom, não é? – abaixou um pouco, para olhá-la nos olhos, sussurrando, vendo-a arregalar os olhos.

— Do que você está falando? – perguntou, recuando mais um passo.

— Sexto sentido. Você sente que algo vai acontecer... Que alguém vai falar algo, geralmente. E já invadiu a mente de alguém, quando estava dormindo. Não foi intencional, provavelmente, mas invadiu. Os cheiros ao seu redor parecem cinco vezes mais fortes, e à noite as cores ficam mais brilhantes do que jamais estiveram. Se controlar com Vampiros e Bruxos por perto é dez vezes mais difícil. Você sente uma vontade quase irresistível de rasgar suas gargantas e se embebedar com seu sangue. A lua parece chamá-la com maior frequência e facilidade, e mesmo durante a lua nova é como se fosse lua cheia, porque a força da lua percorre cada célula de seu ser e a enche com seu poder. Fica muito mais forte do que jamais foi na lua cheia. Você sente o plano espiritual em suas veias, estremece quando percebe que um espírito atormentado passa por perto, sente quando alguém tenta invadir sua mente e o expulsa. – ele sabia que era verdade. Via pelo assombro de seus olhos a cada nova informação.

Aquele Lycan sabia por que ela era diferente. Lycans não podiam sentir o plano espiritual. Era algo desgastante, sabia pelos médiuns que conhecera – eles costumavam pedir abrigo aos clãs em troca de garantir que os Lycans mortos fizessem uma boa travessia. A lua nova diminuía a força dos Lycans. E Lycans nunca, jamais, invadiam a mente de outros, apesar de serem capazes, se treinassem. Consideravam uma enorme ofensa. E ela entrara, diversas vezes, acidentalmente, na mente do irmão quando irritada, e não tinha ideia de como, pois nunca fora treinada para tal. Ruby nunca se arriscara a falar com os pais, sequer com o irmão, em quem confiava mais que todos, sobre tudo aquilo, e discretamente pesquisara nos antigos manuscritos que seu clã possuía, atrás da razão para ela ser daquele jeito, mas suas buscas tinham sido infrutíferas. Sabia que era diferente, mas não demonstrava – muito. E agora, aquele Lycan que com certeza era mais velho do que seu bisavô jamais fora, sabia o que exatamente ela era.

— Você... Você sabe o que está acontecendo comigo? – perguntou, olhando para todos os lados, como que para se certificar que ninguém de seu clã estava por perto. Adrien balançou a cabeça lentamente. Sim. Ele sabia. Ele podia ajudá-la. – O que, então?

Ela realmente estava desesperada. Talvez aquela decisão dos clãs de não mencionarem a Guerra, a Catedral e os velhos Líderes e Guerreiros aos mais novos, há menos que fossem os próximos Alfa ou Beta ou algo extremamente necessário, não fosse tão sensata quanto pensavam. Agora, ele estava diante de uma Lycan confusa, que não tinha ideia do que estava acontecendo com ela, com medo de que fosse algo ruim – bem, ser um Observador não era realmente algo tão bom depois de quinhentos anos, ao menos para ele...

— A causa é que você tem esperança. Esperança demais. – ele começou, franzindo a sobrancelha ao sentir um tremeluzir no plano espiritual, o gato e a cachorra dentro da casa se inquietando. – Isso atrai a atenção de... Como posso dizer? Como lugar, o chamamos de Catedral. Mas é muito mais que um lugar... É uma força, uma mente inteligente... Talvez eu possa compará-la à uma floresta, com tudo interligado. Bem, a Catedral é o centro dessa floresta. A principal árvore, que tudo vê, tudo sente, que escolhe quem merece protegê-la e pisar nela quando bem entender. – ele só estava assustando a garota, percebia pelo brilho de seus olhos. Provavelmente, quinhentos anos atrás, fizera a mesma expressão quando seu mestre Observador o recrutou e o levou para longe de Joseph e Tomás, para aprender o que ele era e o que devia fazer. – Você é o que chamamos de Observadora. Como eu sou um Observador.

Algo estalou na cabeça de Ruby. No quadro, o Lycan à sua frente possuía os olhos azuis como os de Louis, e o cabelo não tinha aquele brilho avermelhado. Ele tinha quinhentos anos ou mais, e parecia apenas ligeiramente mais velho do que o quadro mostrava. Lycans envelheciam num ritmo apenas ligeiramente menor que o dos humanos. Nunca viviam mais do que cento e cinquenta anos – e isso ainda era um recorde.

— Por isso... Seus olhos... Seu cabelo... Diferentes de quando o quadro... E tão velho mas com aparência tão nova? –perguntou, temerosa, sem saber se devia ou não ter perguntado aquilo. Viu-o suspirar.

— Os olhos e o cabelo, sim. É a marca da Catedral quando terminamos nosso treinamento, assumimos nossa missão e ela aceita completamente nosso juramento. A marca de que não temos mais clã, que vivemos apenas para a Catedral. Mas a aparência tão nova... – olhou de forma quase dolorosa para a própria mão. – É uma maldição. Maldição lançada por alguém que eu devia ter protegido, mas não consegui... Observadores realmente envelhecem mais lentamente que sua raça-mãe, mas eu não envelheço. Não mais, por causa dessa maldição. – fechou os olhos, a mão em punho, respirando lenta e profundamente. – Não irei mentir, jovem Lycan. A vida de Observador não é fácil. Abandonamos o clã e quem quer que tenha nos criado. Somos eternos nômades, sempre em busca daqueles que devem ir para a Catedral. – Ruby quis perguntar quem eram esses, mas ele a parou com um sinal. – Não, Ruby. Você não vai aprender quem são, à menos que venha a se tornar uma Observadora. Os clãs decidiram há muito que vocês, filhotes, só aprenderiam se necessário, e vou respeitar essa decisão. – voltou a fazer uma pausa. – Não podemos nos envolver muito profundamente com ninguém, pois o dever para com a Catedral sempre falará mais alto. Nunca teremos descendentes, há menos que a Catedral assim queira. O único benefício são esses poderes que você já experimenta. Mas, se quiser, você pode escolher não abraçar a Catedral de volta, mas ela deixará de te abraçar e todos esses poderes irão embora.

Ruby ficou muda. Tudo aquilo a fez pensar se valia a pena se tornar aquilo. Uma Observadora.

Mas não pôde pensar muito.

Dessa vez, ambos sentiram o forte tremor no plano espiritual, os animais dentro da casa começando a fazer a maior algazarra.

Tudo que Ruby conseguiu fazer antes de sentir sua consciência ser arrastada para fora de seu corpo foi olhar as íris temerosas do Lycan à sua frente.


Adrien sentiu aquele segundo tremor, e percebeu que algo estava errado. Não arriscaria sair do próprio corpo para investigar – não depois do tanto de energia que gastara mais cedo para obliterar o domínio de Louis sobre o inconsciente de Arely.

E notou que Ruby também sentira, tão forte fora. E viu que ela caiu, desacordada, a consciência vagando no mundo espiritual. Ela não tinha treinamento algum. Qualquer tremor mais forte era capaz de arrastá-la. Apoiou o corpo, olhando para os lados, verificando se havia alguém por perto, e escalou o muro, entrando na casa.

O gato e a cachorra o olharam de forma desconfiada, mas nada fizeram. Seriam eles Guardiões de Arely no plano espiritual, e agora estavam tentando rechaçar uma espécie de ataque, e por isso ignoraram quem apareceu no plano material?

Ou talvez trazê-la de volta, foi o que pensou ao ver o corpo da garota caído no chão.

Xingou todos os anjos com missões e informações que tinham lhe aparecido naqueles quinhentos anos, antes de colocar Ruby do lado da humana e entrelaçar suas mãos. Era óbvio que algo arrastara primeiro o espírito de uma, e depois o de outra. O que quer que estivesse acontecendo, ambas estavam envolvidas agora.

— Odeio seguir rastros de espíritos... – murmurou antes de envolver a cabeça de Arely em suas mãos, fechando os olhos, respirando profundamente. A cabeça caiu, e Adrien também não estava mais ali.


Viu-se em algum canto de São Paulo, em um bairro carente, talvez, julgando as paredes descascadas e sujas e o concreto quebrado e levantado por ervas daninhas, entre outras coisas. Olhando mais um pouco, viu Ruby, prestes a atacar uma das quatro Bruxas. Avançou e impediu-a de prosseguir.

— Acalme-se! Ruby, acalme-se! – a garota se debatia; faltava-lhe autocontrole, mas não a culpava. Via o estado que as Bruxas tinham deixado a garota: cortes por todo o corpo, ensanguentada e com muito medo.

— Elas vão matar aquela humana! – berrou, e Adrien fechou os olhos, os ouvidos retinindo. Pulmões potentes mesmo no mundo espiritual... Seria uma excelente comandante na Guerra, caso se tornasse uma Observadora.

— Estamos no plano espiritual. Não podemos ajudar. Só Vampiros e Bruxos conseguem ferir daqui. Além disso, se tocarmos em Bruxos enquanto somos apenas espírito, eles sugarão nossa força vital e só sobrará um corpo vazio em Goiânia. – suspirou, sentindo Ruby se acalmar. – Só podemos assistir. – Adrien a soltou, e finalmente pode observar melhor a cena. As Bruxas ainda decidiam o que fazer com a garota, e ele aproveitou para analisá-la.

O cabelo era comprido, castanho chocolate, olhos verde-azulado, pele pálida e alta. E algo em seus traços indicava parentesco com Arely.

— Conhece aquela garota? – perguntou à Lycan. Ruby olhou-o com olhos de estranhamento.

— A menina mora em sei lá qual cidade. Nunca... – a olhou mais atentamente, franzindo as sobrancelhas finas e ruivas. – Espera... Arely me mostrou uma foto com ela. É a prima, Arwen.

Adrien xingou todos os seus antepassados. Era tudo que faltava. Uma Mensageira com uma irmã de Alma e parente no mundo material que, pelo jeito, também tinha certo poder, ou não atrairia quatro Bruxas.

— Onde a Arely está? Eu consigo sentir a presença dela, mas não sei onde... – Ruby olhava para todos os lados, conformada com o fato de que estava de mãos atadas quanto à salvar a garota. O Observador apontou para Arwen, ferida e ensanguentada. Ruby arregalou os olhos cinzentos. – Como assim? Arely está ali, no corpo da outra?!

Adrien balançou a cabeça afirmativamente.

— É o que nós conhecemos como Irmãos de Alma. Alguns confundem com Alma Gêmea, mas são coisas diferentes... Irmãos de Alma dividem sonhos, pesadelos, experiências... Quando a Alma de um deles sente que o trauma que vem vindo é muito grande para suportar sozinho, atrai a outra Alma. As duas Almas então dividem a experiência por igual, inclusive ferimentos que o corpo tenha recebido. – Ruby franziu as sobrancelhas novamente.

— Quer dizer que, quando acordar, Arely vai ter parte daqueles ferimentos e parte do trauma psicológico de ser atacada por Bruxas, sendo que isso aconteceu com sua prima, e ter até mesmo a memória do ataque? – o Lycan ao seu lado balançou a cabeça afirmativamente. – Que droga... Não adianta nada um monte de Lycans protegendo-a, se a prima ficar sendo atacada...

Nesse instante, as Bruxas pararam de falar, como que chegando à um consenso. Os dois prenderam a respiração, uma das Bruxas deu um passo em direção à Arwen, mas eles só perceberam um mar de fúria vermelha arrastá-la para as sombras, deixando um rastro tão vermelho quanto.

“Que você tá fazendo aqui?”

A pergunta chegou de súbito, e Adrien cambaleou. Não sentira o espírito de Alexandre, mas ligou a pergunta à sombra vermelho-sangue que começara a arrastar mais uma Bruxa, deixando apenas um rastro sanguinolento. Alexandre era o único Lycan e Observador que ele conhecia cuja pelagem reluzia vermelha feito o sangue que ele tantas vezes derramara e que atacava das sombras, tão rápido que tudo que o inimigo via era justamente algo semelhante à um rastro de sangue assassino.

— O que foi ISSO?! – Ruby perguntou de forma quase histérica, tentando identificar de onde viera o ataque, esquecendo por um instante que estava no plano espiritual, onde só podia ser localizada e identificada por médiuns.

— Alexandre. Observador chamado quarenta anos atrás. Meu aprendiz. Ex-membro dos Ludwig, apesar de ainda carregar seu nome. – Ruby o olhou, espantada.

— Minha mãe era dos Ludwig! – Adrien balançou a cabeça.

— Eu levei sua mãe para os Carvalho. Mas Alexandre, o irmão mais velho dela, com treze anos na época... Ele tinha muita esperança. A Catedral o escolheu, e mesmo depois de tudo que eu disse, ele quis ser um Observador... – balançou a cabeça em descrença.

Deus estava brincando com ele. Alexandre dissera que encontrara uma Ômega na última mensagem. Para aquela humana estar sendo atacada e ele protegendo-a, só podia ser ela. E ainda era prima em carne de Arely e Irmã de Alma da mesma... Respirou fundo e enviou a resposta através das ondulações do plano espiritual.

“Irmã de Alma dessa garota aí, foi arrastada e me deu um susto quando essa aqui também foi arrastada. Ela foi escolhida pela Catedral. É sua sobrinha... E essa aí, é realmente uma Ômega?”

“Irmã de Alma... Tudo o que precisávamos...” a sombra vermelha arrastou a última Bruxa, assustada até os ossos e sem saber o que fazer. Saiu então das sombras, um enorme lobo majestosamente vermelho e ensopado de sangue, os olhos amarelados, e andou na direção de Arwen. A garota parecia prestes a desmaiar enquanto ele a cheirava, analisando, tentando saber se os ferimentos seriam fatais ou não. “A única coisa boa é que parece que isso vai salvar essa Ômega... Ela não sobreviveria aos ferimentos se parte deles não fossem para sua Irmã de Alma...” Virou o rosto na direção deles. Como Observador, quando em sua forma de Lobo podia ver quem estava no plano espiritual, talvez em parte por ter tido um antepassado médium. E ele via Ruby e Adrien como se eles fossem dois faróis. “Melhor voltarem. Arwen logo vai desmaiar, e não vai demorar para a Irmã de Alma dela despertar. Você vai precisar pensar numa boa mentira.”

“Você não tem ideia...”

“Vou querer saber de tudo.” Ruby jurou ver os dentes serem mostrados num sorriso malicioso.

“Você precisa saber de tudo. Como Observador” e a última coisa que viram antes que Adrien forçasse seus espíritos à voltarem foi o olhar sério e preocupado que perpassou por Alexandre.


Adrien voltou primeiro à consciência, seguido de Ruby. Ela olhou com assombro para os cortes profundos que agora cobriam os braços expostos de Arely, sangrando em regatos estranhamente finos. Nos poucos segundo em que ficou paralisada, Adrien pegou Arely nos braços e a deitou no sofá, colocando seus braços de forma que o tecido do móvel não manchasse.

O Observador virou-se para a garota.

— Não posso ficar. Logo seu clã vai me perceber aqui, e seu pai não me deu permissão para me aproximar. Você vai ficar aqui até Arely acordar, e inventar algo sobre o motivo de você estar aqui e eu ter ajudado. Ela vai perceber que é mentira, mas você vai insistir. Arely vai acabar aceitando, vai notar que você está fazendo isso para o bem dela. E então ela vai contar o que aconteceu, sem esconder nada. Finja, no início, que não acredita, mas então diga que ela pode contar com você, que você sempre vai ajudá-la. E isso deve ser dito de coração, ou ela não vai acreditar. – deu uma pausa, e pareceu, por um instante, que ia sair, mas falou de novo, olhando de forma dolorosa para a garota desmaiada. – Isso já aconteceu antes, ela vai saber como lidar. Não dê palpite, só a ajude no que ela pedir. – olhou para os olhos cinza atentamente. – Proteja-a, Ruby. Como amiga dela, você pode acompanhá-la a qualquer lugar sem levantar suspeitas. Sem pontos cegos. E fale sobre seus dons com seus irmãos mais velhos. Eles irão ajudá-la. – olhou para Arely uma última vez, murmurou um “Cuide dela” e saiu.

Ruby o olhou sumir pela porta de madeira maciça, o queixo caído, ainda sem entender muito bem tudo o que ele disse.

Ele pedira a ela para ficar até Arely acordar. Ok. E depois? O tal de Observador falara muito rápido. Algo como “Aquilo já tinha acontecido antes”, mentir para Arely e protegê-la. Ah, e algo sobre a humana perceber a mentira e ela ter irmãos mais velhos – ela só tinha um irmão mais velho. Algo assim.

Piscou, puxando-se para a realidade com um beliscão no braço, e olhou para a humana que atraíra a atenção de tantos Lycans. A garota se remexia, fazia algumas caretas, e parecia prestes a acordar. Mal percebeu quando se viu ajoelhada ao lado do sofá, segurando uma das mãos da garota, quando ela abriu os olhos.

Os olhos castanhos olharam para o teto um pouco, e então começaram a vagar pelo local, identificando os detalhes que diziam que estava na sala de estar de sua casa: as três corujas, a tartaruga e o peixe-boi, todos pequenos e de alabastro, comprados no aeroporto na única vez que viajara de avião, anos atrás; os dois gatinhos de louça; o pedaço de ametista que o pai trouxera de uma das viagens; o mamute, a naja, o dinossauro marinho e outros animais de plástico; a coleção Larousse completa; a enorme concha... Estava em casa, não havia dúvidas.

E então, os mesmos olhos vagaram para os braços doloridos. Fechou-os com força quando viu os ferimentos e o sangue manchando a pele branca e a camiseta azul. Tinha torcido pra ser apenas um sonho, e não ter relação com a estranha ligação entre ela e a prima, mas pelo jeito era alguém completamente sem sorte.

Na primeira vez, foi apenas o susto e a lembrança de ter sido assaltada, mas achou não passar de um sonho – embora fosse estranho ter acordado debaixo do chuveiro ligado. Arwen ligara no mesmo dia falando sobre o assalto, na mesma hora em que ela desmaiara durante o banho. Bastou isso para deixá-la atenta.

Na segunda vez, estava levantando para o colégio, quando desmaiou. Acordou um tempo depois, o braço quebrado em dois lugares e a lembrança de um atropelamento latejando na cabeça. Rita, a dona da pensão onde Arwen vivia desde a morte dos pais num acidente de carro, ligara falando sobre o atropelamento dela, que quebrara a perna e que por sorte também não quebrara o braço. Como ainda vivia em São Paulo nas duas vezes, conseguiu facilmente encobrir o braço quebrado com a ajuda de Sílvya: a loira levou-a para o hospital e falou que caiu andando de bicicleta ao tentar desviar de um cachorro que aparecera do nada. Teve sorte por sua mãe estar fazendo compras quando acordou, pois não teve muitas perguntas para responder sobre porque estava em casa e não no colégio – bastou falar que perdera a hora, na época ela não acordava fácil com despertadores e Sílvya estudava em outro turno.

Nunca mais acontecera, e chegara a acreditar que nunca mais ia acontecer. Mas estava redondamente enganada. Além disso, sua razão sequer conseguia explicar o que vira através dos olhos da prima cinco anos mais velha. Aquelas mulheres não pareciam humanas. E a sombra vermelha que as arrastara, deixando o rastro de sangue... Por um instante, achou que a prima estava morta, ainda mais quando o enorme Lobo vermelho e ensopado de sangue saiu das sombras e andou na sua direção. No entanto, sentiu quando ele começou a cheirá-la, e teve a sensação de que havia carinho naquele gesto, antes da prima desmaiar. Ela ainda vagou um tempo em seus próprios e sombrios sonhos – água, água por todo lado, alguém puxando-a para a vida, um rosto de cabelos negros, olhos azul-claro, um tanto fantasmagóricos, e traços finos, murmurando algo como “amaldiçoada” e “corvo-branco da tempestade” – antes de acordar.

E só então pareceu tomar consciência da mão quente de Ruby envolvendo a sua. Por um instante, sentiu medo do que veria na face da garota ruiva, mas ainda assim, conseguiu coragem para virar o rosto e olhar para os olhos cinzentos. Tudo que viu foi preocupação.

— O que... O que aconteceu? – engasgou no meio da frase, a garganta seca. Não tinha notado que sentia sede até aquele instante.

Ruby sorriu levemente. Não lembrava direito o que o Lycan dissera, mas, de algum jeito, sabia o que fazer.

— Você passou mal quando ia abrir o portão pra entrar. Tive de te trazer pra cá. – não toda a verdade. Na realidade, tudo mentira, Arely via. Mas também via a preocupação. Ruby não mentia porque queria, mas porque precisava. – O cara que nos cumprimentou me ajudou. – sim, ele a ajudara... Isso não era mentira. Mas ajudara com o que? Ela não tinha ideia.

— E... Meus braços? – fechou os olhos, decidindo que não importava saber se Ruby mentia ou falava a verdade. Percebeu que a garota diria o que achava ser o melhor. Tentava protegê-la, embora não soubesse do que. Talvez nem ela soubesse.

— Eu não sei. Você estava aí, desmaiada, e de repente esses cortes apareceram. Achei que fosse coisa da minha cabeça, por isso não fiz nada. Mas, se você está vendo, então não é coisa da minha cabeça... – parou para suspirar. – Onde estão as coisas que eu posso usar pra limpar esse sangue e fazer um curativo? – sentiu-a apertar de leve sua mão, a preocupação latejando em cada decibel de sua voz. Balançou de leve a cabeça sem motivo algum, abriu os olhos e apontou para uma das portinholas da estante.

Viu Ruby levantar e ir até a repartição, tirando uma caixa com remédios, esparadrapos e toda a sorte de coisas usadas em primeiros socorros numa casa.
— Vamos até a cozinha. – murmurou, se levantando com cuidado para o sangue não pingar no sofá azul-marinho e guiar a garota até o aposento ao lado. Encontrou uma utilidade para a mesa que estava ali quando puxou com o pé um banco de madeira que ficava ao lado da geladeira, sentou-se nele e apoiou os braços feridos na mesa que ela mesma tachara de inútil mais cedo. A caixa e Tigrinho logo estavam ao seu lado.
Sorriu para o gato enquanto falava para Ruby onde havia panos velhos e que ninguém daria pela falta, Tigrinho lambendo uma de suas mãos, parecendo preocupado.

A ruiva deixou os panos na mesa e foi até o fogão, apagando o fogo e trazendo a leiteira onde esquentara água – cuidara de muitos ferimentos do irmão, dos primos e dela mesma quando voltavam a forma humana depois de pequenos acidentes ao correr pela cidade durante a lua cheia. Arely estranhou ela parecer saber tanto sobre como tratar de cortes em casa mesmo, mas não comentou. Ela falara que morara a boa parte da vida numa fazenda, talvez fosse mais rápido tratar de ferimentos em casa do que ir até a cidade mais próxima.

Ruby não perguntou o que acontecera. Sobre seu desmaio nem sobre os cortes, embora tivesse certeza, enquanto ela molhava os panos e limpava os cortes, que ela queria saber. Que ela merecia.

— Se não estou enganada, sua vó mora com você. Estranho ela não ter aparecido... – foi o que ela disse quando limpara metade do braço direito. Arely riu de leve, torcendo o pescoço para ver o relógio acima da porta. Duas e meia.

— À essa hora, ela está dormindo. Só vai levantar lá pelas três. – Ruby também riu de leve com a informação.

Arely suspirou. Arwen fora atacada no meio do dia! Isso nunca ocorrera à essa hora. Só à noite ou de manhãzinha, nunca com o sol à pleno. Teria sérios problemas se ainda fosse na época que sua mãe não trabalhava.

Sentia que devia contar à Ruby. Que podia confiar nela.

Ou talvez ela estivesse apenas sentindo necessidade de confiar em alguém após um ano e meio naquela cidade, longe da família e dos melhores amigos. Não vira Sílvya, que tanto lhe ajudara, depois do acidente que queimou seus lindos olhos azuis e a deixou cega. Não falara cara-a-cara com Natasha depois que foi aceita no Dante Alighieri, para felicitá-la. Nem mesmo abraçara Arwen desde que chegara ali.

Mordeu o lábio inferior, Ruby passando a limpar o outro braço. Talvez estivesse ficando louca de saudades delas, e agora que alguém a ajudava, se via desesperadamente querendo confiar nessa pessoa. Talvez esse alguém não fosse digno de confiança. Mas ela ainda queria confiar. Ainda sentia necessidade. E quando decidiu falar, sentiu seu estranho dom dizer que era certo fazer aquilo. Confiar em Ruby.

— Ruby... Preciso te contar algo. Mas me prometa: não conte a ninguém. – e ela contou. Contou tudo, não apenas sobre o que acabara de acontecer: falou sobre saber ser seguida, sobre os sonhos, seus piores medos, as outras ocasiões em que aquilo acontecera, sobre saber quando alguém mentia ou dizia a verdade, sobre as tentativas de aproximação de Louis e o quanto ela queria estrangulá-lo por elas, sobre o cara de mais cedo ter aparecido em seu sonho e a salvado de se afogar nele. E sobre a certeza de que faltava algo em sua cabeça. Alguém...

A Lycan ouviu tudo, abismada demais para falar algo. Estava surpresa por Arely de repente confiar tanto nela. E ficou mais abismada ainda com as coisas que ela contara. Ela sabia que o seu clã a seguia no bairro, e que outros a seguiam quando estava fora dele. Saber que Louis definitivamente queria conquistar a confiança de Arely a fez ter certeza de que não devia se afastar da humana, e protegê-la, como o Observador pedira, embora tenha ficado desconfiada com a conclusão de que ele estava em seu sonho. E teve certeza de o que quer que faltasse em sua cabeça, era obra de Louis.

Quando Arely terminou de falar, Ruby já enfaixara seus braços – queria ter costurado os cortes, mas quando viu que não sangravam muito, decidiu que bastaria apertar bem as faixas – embora soubesse que seu pai a mataria se soubesse daquilo. Pensaram um pouco na desculpa que a garota usaria se lhe perguntassem, e foi Ruby quem teve a ideia. Iam precisar de duas luvas de queimados. Diriam que ela derrubara a água que estava esquentando pra fazer arroz quando Tigrinho a desequilibrou. Que, por sorte, a água só estava quente, não fervendo. Que não chamaram ninguém nem foram ao hospital porque Ruby sabia lidar com queimaduras, já que o pai era bombeiro – aposentado, mas não deixava de ser verdade.

E agora, Arely olhava a Lycan atentamente, esperando ser chamada de louca. Ruby fez algumas caretas, como que tentando decidir se acreditava ou não, e finalmente suspirou.

— Eu vi esses cortes surgirem do nada... Seria louca se não acreditasse pelo menos nisso. O resto... Vou ter de pensar. – e era verdade. Ela realmente não sabia se acreditava ou não em tudo o que Arely dissera. Era mais do que o Observador lhe dissera – e ele também não devia esperar que a humana lhe dissesse tanto.

Mas bastou para a garota de olhos e cabelos castanhos. Sorriu suavemente para Ruby, agradecendo-lhe num sussurro sincero por tudo. E a Lycan correspondeu ao sorriso, sentindo carinho pela humana a sua frente. Como se tivesse encontrado uma irmã mais nova.


Era incrível. Cinco séculos tinham se passado, mas ela continuava tão linda como no dia que a vira pela primeira vez, embora os olhos fossem aqueles depois que a mordera. Os cabelos cacheados e negros preso num daqueles típicos e estúpidos penteados – disso gostava nos dias atuais, os cabelos geralmente soltos –, os olhos azul-claro, gélidos e brilhantes como os olhos de qualquer Bruxo. Os traços finos que ele gostara de delinear com seus dedos gélidos antes de mordê-la, ao seu próprio pedido.

E então, seus lábios, vermelhos como vinho tinto, que se abriram num sorriso insolente, antes de falarem.

— E você irá amar a quinta Mensageira que encontrar. Tentará corrompê-la, trazê-la para o seu lado, transformá-la numa Bruxa, mas não conseguirá. Não irá dominá-la. Não irá conquistá-la. Ela será para sempre de Adrien, como eu fui, mesmo que ele não a corresponda. E ela dará sua sentença de morte, não importa o quanto grite que a ama, não importa o quanto implore. Assim eu disse, assim você será amaldiçoado. – e então, sorriu de forma macabra, aquela que já fora uma Mensageira.


Acordou em sua espaçosa cama, a escuridão de seu quarto saudando-o. Sentia-se coberto por suor frio, os pelos arrepiados, os músculos tensos, todos os sentidos em alerta, o plano espiritual ainda se agitando como uma cortina depois de alguém atravessá-la.

Por que ela insistia em atormentá-lo após quinhentos anos? Tinha certeza de que o plano espiritual estava daquele jeito porque fora o espírito dela a passar perto de si, a lhe dar aquele sonho. Ou isso, ou fora um espírito que realmente sabia das coisas. Ou talvez fosse apenas por ter encontrado a quinta Mensageira da maldição que seu subconsciente decidira lhe lembrar dela. Mas não a deixaria dominá-lo. Não imploraria por sua vida à Arely nem que sua sentença fosse ficar vagando pelos sete infernos.

Ergueu-se, a cabeça girando um pouco. Precisava se alimentar, mas nada do sangue vindo do banco de sangue que Sabri fornecia sempre. Queria caçar. Seu corpo clamava por isso, por sentir a adrenalina que a caçada proporcionava. Queria embriagar-se com sangue fresco e com o cheiro do medo da presa.

O rádio-relógio do lado da cama marcava mais de meia noite, menos de uma da manhã. Desviou dos corpos adormecidos dos Bruxos que lhe acompanhavam há quinhentos anos, mas eram bem mais velhos, pois já acompanhavam seu mestre desde o início, antes deste morrer na primeira batalha que Louis participara. Fora devorado pelo Wyvern de um Cavaleiro, depois de um Drachen arrancar-lhe as pernas. Mas não antes de nomear Louis General em seu lugar.

Afastou um pouco a cortina branca e abriu um pedaço da porta que levava para a sacada, esgueirando-se por ela e fechando-a atrás de si. Respirou fundo, os olhos fechados.


E então abriu-os, brilhantes como vinho-tinto e desejando sangue. Sorriu como um predador ao capturar o cheiro da presa ideal – e de fato ele era um predador – e avançou na direção da grade, pulando-a sem cerimônias, pousando no chão com a delicadeza e o silêncio de um felino, para então se entregar à corrida em busca do cheiro da presa ideal.

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