26 agosto 2015

Arely A Mensageira - Capítulo 17: Viajar

Adrien era mesmo um idiota, foi a conclusão que Arely chegou assim que trancou o portão e caminhou na direção da porta, se esforçando para manter as vozes afastada e permanecer lúcida. Ele fora contra o que tanto Ruby como Allan tinham sugerido: que ela continuasse na sede do clã Carvalho, por causa do risco que os pais dela corriam caso ela mergulhasse na insanidade. Ele apenas alegara que estar perto dos pais deveria era facilitar que ela permanecesse lúcida e capaz de descobrir seu pior medo.

Idiota. Sem dúvida alguma. Cada coisa que as vozes e as visões contavam e mostravam sobre ele aumentavam o quão idiota ela o achava. Inferno de maldição que a fazia, apesar disso, ainda amá-lo.

Abriu a porta da sala de cabeça baixa, empurrando-a com uma das mãos. Algo pinicava em sua mente, as vozes agitadas, loucas para arrastá-la. Havia muito silêncio na casa. Nunca se acostumaria com a ausência de Kyara e Tigrinho, mas ainda estava muito silencioso.

Ergueu a cabeça e encarou com desconfiança a mesa onde sua mãe fazia-os sentar para comer ao menos nos fins de semana; deixou a bolsa com suas coisas cair perto da porta antes de se aproximar. Viu uma panela com macarrão à bolonhesa até a metade, no centro da mesa, uma vasilha com salada de alface e tomate, e pratos com a macarronada, meio comidos, os garfos apoiados no vidro. Tocou com cuidado a comida, confirmando que estava fria.

Um arrepio de pavor subiu por sua coluna. Percorreu rapidamente o térreo, vendo as portas para os fundos com os cadeados trancados, antes de parar ao pé da escada.

- Pai?! Mãe?! – a voz tremeu quando os chamou. Sentiu os olhos começarem a marejar quando passou-se um minuto sem resposta. Os chamou de novo, mais alto, e de novo apenas o silêncio a cumprimentou.

Subiu correndo os degraus e, apesar de ter percorrido aquela escadaria incontáveis vezes nos últimos dois anos, conseguiu tropeçar duas vezes; só não quebrou a cabeça nos ângulos agudos por ter conseguido se segurar no corrimão, o ombro reclamando pelo esforço.

As portas estavam todas abertas. Verificou a mini-biblioteca e o próprio quarto antes de entrar no dos pais.

A cama estava impecável. A porta do banheiro, disfarçada para parecer uma porta do armário embutido, também. Tentou chama-los uma última vez, de novo sem sucesso.

O carro estava na garagem. E a comida tinha sido abandonada na metade. Aquilo não fazia sentido. Algo acontecera com seus pais. Sentiu a garganta começar a apertar conforme a vontade de chorar de desespero aumentava.

Virou-se, prestes sair do quarto e a correr para baixo, pegar o celular na bolsa e ligar para Allan, mas alguém barrava seu caminho.

O cabelo era preto num corte militar, deixando-a ver todo o rosto de pele escura de sol de expressão sonolenta. Mas os olhos eram de um azul claro leitoso que expunham tudo, menos sono. Uma inteligência astuta e perversa. Não se deixou enganar pela pose relaxada do corpo magrelo. Havia algo na forma como os braços estavam soltos ao longo do corpo que lhe dizia que ele era capaz de mata-la com um estalar de dedos.

- Você demorou. Louis já ligou umas duas vezes perguntando de você. – ele bocejou, sem se preocupar em cobrir a boca. – Sou Jabez, aliás. – Jabez. O segundo Bruxo. Um Mensageiro que matou e aceitou parte de um Demônio no lugar. O primeiro a fazê-lo. – Vamos. Louis vai acabar matando seus pais só por diversão se demorarmos muito.

Sentiu seu coração gelar. Molhou os lábios devagar, abrindo e fechando as mãos. Controlou-se para não avançar e tentar atingir o rosto do Bruxo. Mesmo as vozes tinham se calado, como se aquele momento fosse tão crítico que precisavam dela lúcida.

Ela vira Allan ligar para Matheus e perguntar se estava tudo bem, antes que a deixassem em casa. Como tinham furado a segurança em torno do lugar e levado seus pais em tão pouco tempo?

Não. Fazia tempo. A comida tinha esfriado. Como tinham feito isso sem alertar os Lycans?

- Como conseguiram leva-los? – a voz saiu num sussurro. Jabez deu de ombros.

- Demos um jeito nos Lycans cuidando da segurança do lugar usando demônios e espíritos atormentados de novo. E peguei o celular do próximo Beta, antes que pergunte como que o ruivinho conseguiu confirmação de que estava tudo ok. – o Bruxo tirou um celular do bolso, balançando-o. – É incrivelmente fácil imitar a voz de alguém usando magia. Agora vamos.

Sem aviso, ele segurou seu braço com força, perto do punho, e começou a puxá-la para fora do quarto.



Ela não tinha ideia de em qual lugar de Goiânia estava. Jabez a enfiara num carro comum, que não chamava muita atenção, com um homem ao volante que tinha porte de motorista profissional. Tinham corrido por ruas e avenidas que ela reconhecia cada vez menos, até entrarem num condomínio fechado que, de fora, parecia imenso; percorreram outras ruas, em meio a casas únicas terminadas e outras em construção e terrenos vazios. Quando estacionaram na frente da casa mais distante, já tinha anoitecido.

Jabez e o motorista a fizeram contornar a casa, chegando a um jardim nos fundos que parecia saído direto de uma revista de decoração, com uma piscina não muito grande que mais parecia um lago natural de longe, em meio às plantas ornamentais exóticas.

Seus pais estavam sentados num banco de metal formado por arabescos, fortemente abraçados. O rosto de Maria Paula estava oculto no pescoço de Isaque, não deixando Arely ver como ela estava, mas o do pai estava erguido. Mostrava medo, mas também determinação. Do outro lado de uma mesa também de metal em arabescos, estava Louis, numa cadeira seguindo o mesmo modelo – era impossível confundir o cabelo claro do Vampiro. Viu a determinação ser substituída por mais medo quando ele a notou.

Tentou correr para eles, falar que tudo ficaria bem – mesmo que uma voz ao fundo tivesse passado a murmurar que nunca as coisas ficariam bem de novo –, mas Jabez agarrou a parte de trás de seu casaco e a manteve no lugar.

O motorista avançou, parando atrás do banco de seus pais, junto a um homem magro de aparência ligeiramente doente. Arely então viu Louis se levantar de um pulo e virar, avançando em sua direção com algo como um sorriso no rosto pálido. O Vampiro parou diante dela, os braços cruzados diante do peito magro, exposto por uma camisa de botões totalmente aberta. O cabelo estava mais longo e bagunçado do que ela se lembrava. Os olhos azul-claro possuíam gotas de vinho-tinto.

- Finalmente nos vemos de novo. – Arely semicerrou os olhos castanho-chocolate para o Vampiro de forma ameaçadora. Ele estava perto demais. – Você realmente não sabe como esse seu olhar de raiva te deixa bonita? – mal teve tempo para se surpreender antes que uma das mãos de Louis segurasse sua mandíbula, mantendo-a no lugar, e os lábios, frios em comparação à sua própria temperatura corporal, tocassem os seus, prendendo o lábio inferior entre eles.

Apoiou as mãos no peito do Vampiro e tentou empurrá-lo, sem sucesso. Sentiu os caninos pontudos morderem de leve o lábio, sem tirar sangue. O cheiro de metálico sangue que o rodeava invadia suas narinas, deixando-a zonza.

Imediatamente lembrou do pesadelo em que ele a mordia, e entendeu. Não era um pesadelo. Era uma visão. Lembrava claramente de como tivera a sensação, na visão, de que não era a primeira vez que Louis a beijava. Aquele era o primeiro. Logo viria o segundo.

Na visão, ela estava passiva enquanto ele a mordia e fazia entrar em contato com o sangue contaminado. Ele a convencia a aceitar aquilo, à contra gosto. Nunca pensara que aquilo fosse uma visão porque, para Arely, era incapaz que ele a convencesse. Mas agora não. Ele tinha seus pais. Ela faria qualquer coisa para mantê-los seguros.

Ele finalmente se afastou, um sorriso satisfeito no rosto, e impediu-a de se afastar ainda mais ao jogar um braço em torno de seu pescoço. Jabez passou ao seu lado, alcançando o homem de aparência doentia e o cumprimentando.

- O que você quer? – a Mensageira tentou se soltar do braço, mas só conseguiu que Louis a puxasse mais contra ele.

- Ah, muito simples... Você vai deixar eu te transformar numa Bruxa. Em troca, seus pais ficam vivos e bem e por muito tempo e ninguém mais atormenta eles. Para garantir que não fiquem preocupados com você, Jabez e Sandman vão apagar você da vida deles usando magia. Será como se nunca tivesse existido. – ele respondeu quando já estavam próximos de Maria Paula e Isaque.

Engoliu em seco. Podia confiar de que eles ficariam seguros se deixasse Louis ir em frente? As vozes diziam que sim. Que o Vampiro não quebrava promessas feitas para conseguir alguém para sua “causa”. Mas lutaria contra Ruby e Allan e provavelmente os mataria. Mas seus pais estariam bem e seguros, mesmo que não se lembrassem mais dela.

- E se eu falar não? – as vozes já lhe diziam o que aconteceria, mas queria ter certeza.

- Mato eles na sua frente e te transformo de todo jeito. – sentiu Louis dar de ombros, mas notou uma inflexão estranha em sua voz... Algo de tensão. Ele não queria transformá-la à força.

Adrien lhe contara como a transformação de um Mensageiro em Bruxo devido ao contato com sangue de Vampiro doía, e que se fosse algo contra a vontade do Mensageiro, era capaz de apagar memórias e mudar completamente a pessoa de formas inimagináveis.

Induzida pelo que as vozes sussurravam ao se enroscar em sua mente, acreditou que Louis, por alguma razão, não queria que ela mudasse nem tivesse suas memórias alteradas. A queria do jeito que era.

Voltou a engolir em seco.

As vozes não berravam o que devia fazer, mas continuavam falando, ininterruptamente. Não conseguia entender tudo, mas era capaz de ouvir algumas falando sobre livre-arbítrio. Não sabia por que.

- Posso me despedir deles antes? – perguntou com a voz fraca, virando o pescoço para olhar Louis nos olhos. Um sorriso mostrando os caninos pontiagudos se abriu no rosto do Vampiro; Arely enxergou alívio e alguma outra coisa que ela não conseguiu identificar no momento.

- Claro que pode. Cinco minutos, ok? – balançou a cabeça devagar em afirmativa. Era melhor não abusar.

O braço saiu de seu pescoço, libertando-a. Viu Louis acenar para os dois Bruxos e para o motorista, que se afastaram alguns passos junto dele. Imediatamente correu, parando se ajoelhando diante de seus pais.

Isaque cutucou o ombro de Maria; sua mãe ergueu o rosto, molhado com lágrimas. Apesar disso, os olhos brilhavam para Arely. A garota estendeu as mãos e segurou com firmeza as dos pais entre as próprias.

- Amo vocês. – resmungou, a garganta apertada com a força que fazia para segurar as lágrimas. Ambos sorriram.

- Também te amamos. – Maria sussurrou, puxando a mão de Arely que segurava a própria até colocar um beijo nas costas e apoiá-la contra a bochecha.

- Ele... Falou muita coisa, Ly. De uma forma como se não estivéssemos aqui. – Isaque começou, apertando com força a mão da filha. – Não sabemos por que nem o quê, exatamente, ele quer de você, mas sabemos quando algo é errado e ruim. – se inclinou para frente, sinalizando com a outra mão para Arely se aproximar. – Quando algo nos tira o livre arbítrio que Deus nos deu de fazer o mal e o bem da forma que quisermos... Isso impede que Deus trabalhe em nós. Deturpa quem somos. – Isaque soltou a mão da dela e colocou a mão em concha em seu rosto. – Lembra do que te ensinei? Aquela frase de C. S. Lewis?

A frase brotou facilmente nos lábios de Arely, algo que ela guardara com cuidado ainda pequena, por ter sido ensinado pelo seu eterno herói.

- Deus não nos ama porque somos bons; Deus nos faz bons porque nos ama. – sussurrou, e viu o pai sorrir.

- Deus não pode nos fazer bons se estamos sem o livre-arbítrio de seguir nossos próprios caminhos, mas permitindo que Ele atue em nossas vidas. E o que esse rapaz pede de você, Ly... Posso ver, claro como o sol: é o assassinato de seu livre-arbítrio. Não quero ver esse direito básico arrancado de minha filha. Não aceite o que ele oferece. – Arely fechou os olhos quando sentiu um beijo suave em sua testa, como quando ainda era uma garotinha e tinha um pesadelo.

- E... Flor de Maracujá? – o apelido antigo fez um sorriso brotar nos lábios de Arely a contragosto, enquanto se voltava para a mãe. O rosto dela estava sério, enquanto envolvia seu queixo com ambas as mãos. – Preferimos morrer a esquecer da melhor coisa que já nos aconteceu: você. – e como Isaque tinha feito, Maria beijou sua testa.

Arely sentiu seu coração desmoronar e a fogueira que era seu espírito murchar até ser apenas a luz de uma vela quando finalmente entendeu, com aquela simples frase, qual era seu maior medo que ela sequer sabia: abandonar os pais à própria sorte. Deixá-los morrer. Louis sabia disso, de algum jeito, e usava isso contra ela. Ele conhecia Arely melhor do que ela imaginava, porque sabia que seus pais e a segurança deles eram tudo que realmente importavam, tudo que realmente tinham feito ela seguir tudo que Adrien dissera desde o começo.

Entendeu porque as vozes falavam sobre livre arbítrio. Entendeu porque seu pai falara sobre isso.

Porque salvá-los e se tornar uma algoz do mundo ou deixá-los morrer e cumprir o papel de Mensageira que lhe fora imposto era um exercício de seu livre-arbítrio. Um exercício ingrato e injusto. Mas ainda era sua escolha e de mais ninguém.

Abraçou os pais pelos pescoços, desequilibrando-os por um momento; logo eles apoiavam as mãos em suas costas e a esfregavam, trazendo de volta um pouco do calor que se perdera ao entender a decisão diante dela. De enfrentar ou não seu mais pavoroso medo.

- Sempre tivemos orgulho de você, e sempre vamos ter. – Maria sussurrou em sua orelha, antes de beijar sua têmpora.

Arely sentiu as lágrimas escorrerem sem controle por seu rosto. Não podia escolher o que deveria escolher. Não conseguia. Se sacrificar pelo mundo era uma coisa, e isso ela conseguia. Sacrificar outros, pessoas inocentes e que ela amava, era algo completamente diferente.

Implorou a Deus que existisse outra alternativa. Que algo acontecesse e a impedisse de tomar aquela decisão. De ter de deixar seus próprios pais para morrer.

A única coisa que aconteceu foi a voz de Louis perfurando a névoa de angústia em sua mente, falando que os cinco minutos tinham passado. O “não” tácito exposto na ausência de qualquer coisa.

Beijou as bochechas dos pais, se desenroscou de seus braços e então se levantou. Estava preparada para virar e encontrar Louis no meio do caminho. E a sua própria voz, tristonha, se impôs em sua mente como tantas vezes antes.

“Jesus sabia pelo que passaria e pediu: ‘Pai, se queres, passa de mim esse cálice’, e a resposta que recebeu foi não. Jesus bebeu do cálice da crucificação até o fim em nome dos pecados da humanidade. E eu devo beber o cálice de escolher a vida e o livre-arbítrio do mundo acima daqueles que amo até o fim, mesmo que isso signifique deixá-los à morte.”

As lágrimas escorreram com mais abundância, e finalmente entendeu a tristeza infinita naquela sua própria voz: era a voz de alguém que fazia o que tinha de ser feito e que morria pouco a pouco a cada escolha impossível e pessoa amada morta. E entendia também porque tinha o seu próprio timbre. Sua mãe uma vez dissera que ela, Arely, fazia o que tinha de ser feito, mesmo que doesse. Nunca antes tinha sido uma decisão tão amarga.

Os olhos castanho-chocolate encararam a piscina disfarçada de lago natural, e mal percebeu quando seus pés começaram a correr em sua direção.

Tinha estado mais lúcida desde o afogamento mais cedo. Desconfiava que se afogar era sim um grande pavor, equiparado ao de abandonar os pais. As vozes a empurravam em direção à água. Não bastava enfrentar um medo terrível. Precisava enfrentar dois, ao mesmo tempo.

De alguma forma, alcançou a água. Esperava sentir Louis segurá-la antes, mas não.

Sem pensar duas vezes nem parar, as lágrimas ainda escorrendo pelo rosto, pulou dentro da piscina.



O Vampiro demorou cinco segundos para processar que Arely corria na direção contrária a ele, na direção da piscina, e finalmente começar a correr na direção dela.

Era como se algo o barrasse e a ajudasse, porque tropeçou e perdeu velocidade e equilíbrio duas vezes, e quando quase era capaz de agarrar os cabelos compridos e puxá-la, ela pulou na água e sumiu diante de seus olhos.

Encarou a piscina vazia por poucos minutos, os dedos das mãos tendo espasmos de raiva contida. Os olhos foram completamente tomados pelo vinho tinto e os dentes doíam com a vontade de estraçalhar pescoços e se embebedar de sangue.

Lentamente, virou-se e encarou os dois humanos, ainda sentados, ainda encolhidos, mas com os rostos desafiadores de quem conseguiu o que queria. Eles tinham falado algo. Tinham feito Arely mudar de ideia e fazer o que ele acreditava que ela nunca seria capaz. De fazer o que ele não fora capaz: as ações de Louis tinham garantido que Felippa fosse transformada, apesar de, na época, ela berrar que preferia morrer a se transformar num “monstro chupador de sangue”, nas palavras dela.

Os dois iam pagar por afastá-la dele.



Água cercava Arely de todos os lados. Não tinha ideia do que era cima, baixo, esquerda ou direita; era um turbilhão que a sugava. Aquilo a fazia sentir desespero, embora, de alguma forma, fosse capaz de respirar.

Algo a empurrou, e quando estendeu os braços, suas mãos sentiram algo com a textura de pedras cobertas de algas. Aquilo se tornou sua referência por alguns segundos, antes de sentir a água parar de oprimi-la, baixando lentamente, com a gravidade passando a agir sobre ela: repentinamente estava ajoelhada numa margem pedregosa que entrava na água num ângulo suave, as mãos mergulhadas até os cotovelos.

Aquilo não fazia lógica, porque a água teria que ter alagado aquele lugar anteriormente, e pelo que viu, não parecia ser o caso. Era como se algo que antes era vertical tivesse se erguido até estar quase horizontal apenas para tirá-la da água.

Se arrastou para fora daquele lago, as lágrimas voltando a escorrer por seu rosto ao perceber que realmente deixara os pais para morrerem nas mãos de Louis. Quase em terra firme e seca – pedras com baixos-relevos esculpidos, gastas e quebradas, com plantas brotando por entre elas – sentiu uma pedra se soltar em suas mãos. Quase ausente, ergueu-a para fora da água. Era escura como a noite; o lado contra sua mão estava coberto de algas roxas, mas o outro era multifacetado como se a pedra tivesse sido lapidada por um cuidadoso ourives.

Deu de ombros e continuou a se arrastar; inconscientemente continuou segurando a pedra.

No seco, sentiu qualquer força que a fizera sair da água abandoná-la. Caiu de lado, se encolheu em posição fetal e começou a chorar e a soluçar sem abandono. Arely achava que talvez gritasse também, mas não tinha certeza. Tudo se resumia à culpa corroendo suas entranhas, à tristeza entorpecendo sua mente e sentidos e à vontade de morrer lenta e dolorosamente, como Louis devia estar fazendo com eles.

Ela não devia ter feito aquilo. Não devia. Não podia. Como tinha sido capaz de abandonar seus pais? Com Louis?

Ela devia voltar. Mas eles já deviam estar mortos.

Como ela era capaz?



Allan estava perdido. Pela terceira vez nas poucas horas desde que Adrien o levara para a Catedral.

O Observador avisara, é claro, sobre como o lugar mudava constantemente e que levava-os para onde queria, mas o Lycan não acreditara até perceber isso com os próprios olhos.

As paredes altas demais, de pedras cheias de baixos altos relevos e mosaicos gastos, o teto que mostrava um céu arroxeado por entre buracos imensos e sustentado por colunas intrincadamente esculpidas, as árvores e trepadeiras e arbustos que saíam por entre cada fresta nas pedras das paredes e chão e cipós descendo desde o teto, os lagos e rios e portas que surgiam aleatoriamente, os aromas de milhares de plantas e flores e terras invadindo suas narinas ao mesmo tempo... Tudo o confundia. Tudo parecia muito igual, e ao mesmo tempo, muito diferente.

E agora, mais do que nas outras duas vezes, tinha a sensação de que estava sendo guiado, porque parecia não importar o quanto tentasse seguir os pontos de referência que Adrien lhe passara para encontrar o que chamavam de Terra de Ninguém, onde as batalhas contra os Vampiros, Bruxos e Demônios ocorriam – o Observador queria lhe mostrar o lugar e explicar como ele mudava a cada hora, para que Allan fosse capaz de guiar o seu clã –, ele continuava sem saber onde estava. Os outros Alfas e herdeiros de Alfas que Adrien levara sem dúvida já estavam lá, e ele ali, perdido pela vontade da Catedral.

Notou algo começar a mudar lentamente. As plantas. Não pareciam mais tão vivas quanto minutos antes. Com as sobrancelhas franzidas, segurou um lírio com cuidado. Em segundos, a flor, antes vistosa e de um branco que doía os olhos, murchou, as pétalas caindo ao sabor de uma brisa sempre presente cuja fonte ele desconhecia.

Adrien e Ruby tinham falado sobre isso. Mas ele não conseguia lembrar o quê. Algo em sua mente dizia que era importante, mas... Por quê?

Com a preocupação bicando seu cérebro, Allan acelerou o passo, determinado a encontrar o Observador, mas parou numa bifurcação quando sua audição captou um som estranho. Um grito. Dolorido. De agonia. E então, soluços.

A fera enlouqueceu no fundo de sua mente. Sem nem perceber, seguiu a direção do grito, e teve a sensação de que era aquilo que a Catedral queria o tempo todo: que ele o ouvisse.



Havia alguém deitado de costas para ele em meio a colunas caídas e perto de um lago límpido, num lugar que provavelmente fora um belo salão um dia. Os gritos, soluços e choro, desesperados e doloridos, vinham dessa pessoa. Tentou diferenciar o cheiro que a pessoa exalava, mas as plantas murchando e espalhando o cheiro de podridão e morte se sobrepunham de uma forma que ele nunca vira antes, tornando seu olfato praticamente inútil.

Observou com cuidado, se aproximando com passos cuidadosos, evitando as pedras que pareciam mais soltas e as raízes que se espalhavam por entre o chão. E sentiu a garganta fechar e o coração disparar quando reconheceu o conjunto de moletom cinza e vermelho, os tênis verdes da Reebok de Ruby, e o longo cabelo castanho e molhado grudado ao tecido.

Arely.

Como ela chegara ali?

Allan correu até a garota encolhida em posição fetal e se ajoelhou ao lado da Mensageira. Com cuidado, a puxou até que ela estava entre seus braços, encolhida contra seu peito e continuando com seu choro que ele não sabia o motivo, cheio de uma dor que ele não entendia.

Apertou o abraço em torno dela e beijou o cabelo molhado diversas vezes, mas ela permaneceu presa no que quer que a fazia chorar. Com uma das mãos, Allan segurou seu rosto, frio por causa da água, beijou sua têmpora e então, forçou-a a deitar a cabeça em seu ombro antes de voltar a abraça-la. Estava se sentindo se opções quanto ao que fazer para tentar acalmar Arely e descobrir o que acontecera.

Mal se percebeu a começar a cantarolar – Ruby sempre dissera que ele tinha uma boa voz, mas Allan nunca tivera muito o costume de cantar. Estava mais ocupado ajudando o pai com assuntos do clã, estudando e sendo um Lycan.

- L'inverno sai finirà, E come è arrivato se ne andrà, E scioglierà il dolore, Come la neve al sole... E le ferite che hai, Lo sai guariranno prima o poi, Dopo la notte l'aurora, Ancora verrà si perchè...¹ – os gritos diminuíram, substituídos quase totalmente por soluçoes. Allan teve a sensação de que fora para conseguir ouvir melhor. Acariciando um dos braços e as costas de Arely, cantou mais uma estrofe. – Torna alla vita più serena, Che rifiorisce come primavera, La vita grida a voce piena, Dentro te...² – Arely ainda chorava copiosamente contra ele, mas... Estava um pouco mais calma, de algum jeito.

- Il Divo, Allan? – a voz dela saiu sufocada e cortada por soluços, uma fraca tentativa de uma piada. O Lycan se permitiu um suspiro aliviado.

- Não enche, Arely. – ele resmungou, abraçando-a mais forte. – O que aconteceu? – deu alguns segundos antes de fazer a pergunta. Sentiu o corpo dela saltar com soluços mais intensos e frequentes e o peito se encher de ar, como se estivesse se preparando.

- Meus pais, Allan... Meu maior pavor... – O Lycan sentiu o próprio corpo travar com aquele começo. Algo acontecera com os pais de Arely. E se acontecera, era porque seu clã falhara em protegê-los. – Era abandoná-los à morte... Louis sabia, de algum jeito o desgraçado sabia... Era me tornar uma Bruxa... Ou deixá-los lá, com ele... Deus, eu quero morrer.

Ela não falou mais. Continuou chorando, o corpo sacudindo com os soluços. Allan sentia como se aquilo fosse uma piada de mau gosto. Algo terrível acontecera com os pais de Arely, e ela fora forçada a escolher entre tudo aquilo – ser uma Mensageira, lutar pelo mundo, iaha – e quem lhe criara.

Ele não tinha ilusões. Isaque e Maria estavam mortos, provavelmente de forma dolorosa como vingança. Louis não teria piedade.

O sacrifício que Arely fizera em nome de ser o que nascera para ser e para manter a própria sanidade era grande demais, cruel demais, amargo demais.

Afastou-a um pouco e prendeu o rosto dela entre suas mãos, afastando como dava as lágrimas que escorriam com o polegar, e encostou a testa na dela. Os olhos dela estavam firmemente fechados, a boca torcida de um jeito estranho, como se ela tentasse lutar contra si mesma.

- Ritroverai anche tu, La forza che ora non hai più, E quella voglia di vivere, Che ancor non c'è tornerà...³ – cantarolou, e ela lentamente abriu os olhos nublados e o encarou.

- Não sei se vou encontrar essa força e vontade de viver não, Allan... – ela espremeu em meio aos soluços. Allan ergueu uma sobrancelha, um pouco curioso para saber como ela sabia o que aquela parte da canção dizia. Um sorriso pequeno apareceu nos lábios dela, mas logo sumiu. – As vozes... É como se agora eu pudesse falar e entender qualquer língua... – mal falou, as lágrimas voltaram a escorrer com força total.

- Então, eu vou ser a sua força enquanto ela não volta. – sorriu para ela e beijou sua testa, antes de voltar a envolver os braços em torno de Arely. Dessa vez, ela se contorceu até conseguir abraçá-lo de volta e apoiar a cabeça confortavelmente em seu ombro, o nariz cutucando o pescoço do Lycan.

- Eu não te mereço... – ela resmungou, e Allan a cortou antes que ela pudesse continuar.

- Não começa de novo com essa história.



A Catedral estava passando a perna nele, definitivamente.

No momento que percebera a vida selvagem na Catedral murchando e morrendo, Adrien soube que Arely estava ali e sentimentalmente destroçada. Apenas Mensageiros eram capazes de afetar aquele lugar entre dimensões de forma tão intensa, de fazer a Catedral se moldar ao redor deles.

E desde Elizabeth que a Catedral não o fazia se perder. O lugar não queria que ele encontrasse Arely, não tão já. Lhe pregava peças, fazia paredes aparecerem onde elas não existiam antes, guiando-o pelo que com certeza era o caminho mais longo. Ruby, alguns passos atrás, estava definitivamente irritada com aquela demora.

Finalmente, sentiu-se num lugar que reconhecia, e notou a forma como a Catedral passou a sinalizar o caminho até Arely – flores vermelhas e amarelas que pareciam fogo e que ele nunca vira ali, crescendo em trepadeiras, indicando quando virar e quando continuar reto.

Afinal, viu-se diante de uma porta que nunca vira antes, que parecia nova, feita de uma madeira escura e coberta de entalhes que falavam sobre chamas e tristeza e responsabilidade, com as flores vermelhas e amarelas cercando-a em arco.

Estava prestes a empurrar a porta, apenas encostada, uma fresta muito fina entre ela e o batente, quando a prancha de madeira se afastou repentinamente e deixou Allan à vista. O Lycan franziu as sobrancelhas para eles, e fechou a porta atrás de si; a Catedral trancou o lugar por vontade própria, trepadeiras e gavinhas travando a porta. Adrien conseguiu apenas ver a cabeça coberta de cabelos castanhos de Arely em meio a um cobertor grosso de algodão antes de sua visão ser obstruída.

- O que aconteceu? – seguiu Allan através do corredor; não adiantava tentar forçar a porta. A Catedral não o queria ali naquele momento.

- Aconteceu que o maior medo de Arely era abandonar os pais à morte e Louis sabia disso. – o Lycan resmungou entre dentes; os olhos brilhavam perigosamente em azul, deixando o Observador ciente do quão irritada estava a fera de Allan e o próprio.

- Ah, Deus... – ouviu Ruby murmurar com tom assombrado, enquanto sentia o estômago afundar. Não se lembrava de conhecer algum Mensageiro com medo semelhante que realmente tivera de fazer tal sacrifício, uma vez que os Observadores sempre encontravam um modo de fazer parecer que tal coisa acontecera de forma que o Mensageiro acreditasse nisso e assim, enfrentasse seu medo, mas sem realmente machucar alguém.

Não era a toa que a Catedral estava protegendo Arely.

- Demorou muito para conseguir fazê-la se acalmar e dormir... – ouviu Allan murmurar, seguido então de um riso curto e com uma nota de amargura. – E ainda assim, ela insistiu em me obrigar a voltar e resgatar os Lycans que cuidavam da segurança dos pais dela, que ainda tem tempo...

- Vá com ele, Ruby. – Adrien não hesitou em dar a ordem, e ficou parado no corredor enquanto os dois irmãos avançavam por entre a Catedral.

A flor de uma mandrágora acabara de brotar perto dele, e apenas isso o impediu de acompanhar os ruivos. Conhecia o sinal. O Guardião – ou melhor, Guardiã – acabara de passar pelo próprio teste.

Hayato logo também estaria ali.

Acariciou as pétalas aveludadas e escuras da flor com cuidado.

- Hayato vai saber o que falar pra Arely. Ele sempre sabe o que falar pra qualquer um. – resmungou consigo mesmo, antes de começar a seguir a trilha de mandrágoras que a Catedral fizera crescer.


¹: “O inverno, sabe, acabará, E como chegou, irá, E acabará a dor, Como a neve ao sol... E as feridas que existem, Você sabe, sararão antes ou depois, Após a noite, Aurora ainda virá, sim, porque...” – Primeira e Segunda estrofe de “Come Primavera”, Il Divo
²: “A vida volta a ser mais serena, E refloresce como a primavera, A vida grita, à voz plena, Dentro de você” – Refrão de “Come Primavera”, Il Divo

³: “Você também encontrará, A força que agora não tem mais, E aquela vontade de viver, Que ainda não retornou” – Quarta estrofe de “Come Primavera”, Il Divo

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