04 março 2016

Elysium 1: Fenris Fenrir - Capítulo 6

Nunca pensei que fosse dizer isso, mas carne crua, com nenhum tempero além do sangue natural de qualquer que fosse o bicho, tinha um sabor incrível; talvez fosse a fome monstruosa que fazia parecer que eu tinha um buraco negro no lugar do estômago, em consequência do meu corpo estar à toda para cicatrizar os ferimentos logo, um aviso dado por Tyvan, ou talvez fosse por não ter tomado café, ou porque era bom mesmo, mas eu ainda queria pelo menos mais dois pedaços que davam no mínimo três punhos meus. Tipo, eu estava com tanta fome que nem estava mais ligando se a porcaria do ombro ou da cabeça doíam feito o inferno, ou se eu conseguira sujar a gola da camiseta cinza de vermelho, ou se estava parecendo um zumbi que acabara de devorar algum cérebro; não estava sequer preocupado com o quão fácil estava sendo rasgar a carne com os dentes.

Simplesmente precisava tampar o buraco que estava mandando minhas entranhas para algum universo paralelo, e a carne que Luís tinha jogado na minha frente era a única coisa capaz disso.

Até a mesa com interface touchscreen se acender logo acima da bandeja, exibindo uma tela retangular com o rosto pálido de cabelos loiros e com olhos castanho-chocolate de minha mãe no meio do que reconheci ser a sala dos professores do Colégio Municipal de São Paulo. Os olhos dela estavam tão arregalados que pensei que fossem cair, enquanto o queixo estava tão frouxo, mas tão frouxo, que parecia que a mandíbula dela tinha deslocado.

Droga.

Eu devia ter seguido a dica de Luís e entrado em contato com ela antes do almoço...

A carne caiu da minha mão com um baque enquanto eu encarava Isabel, completamente sem reação, apenas abrindo e fechando a boca feito um peixe repetidas vezes, até que alguém – imagino que Luís – enfiou um pano na minha mão e imediatamente comecei a tentar limpar meu rosto e mãos.

Minha tentativa não durou mais de um minuto: Eliana também brotou na tela, berrando “Madeu!”, com seu lindo sorriso e parecendo querer atravessar a tela para me abraçar. Literalmente travei, com uma das mãos esfregando o pano contra uma das minhas bochechas cheias de sangue já meio seco.

A fera, aquele bicho estúpido, só ria, não dando palpite nenhum de como eu devia agir; enquanto eu esperava a reação da minha irmã, que eu só imaginava que seria sair correndo e chorando, percebi que o refeitório estava estranhamente silencioso.

Pelo jeito, todo mundo estava curioso para saber quanto que o mestiço aqui ia se ferrar.

As sobrancelhas dela se franziram debaixo da aba de sua inseparável boina, a cabeça inclinando pra um lado e fazendo um biquinho.

Elavaicorrer, elavaicorrer, elavaicorrer...

- Por que você tá com a cabeça enfaixada, Madeu? – soltei um suspiro aliviado; a fera parou de rir, resmungando algo que não me esforcei para entender, o movimento e a falação voltando a dominar o refeitório, mas num nível mais baixo do que eu esperava.

- Exatamente. Joshua me mandou uma mensagem de manhã, falando que já podíamos entrar em contato com você, mas avisando que tinha acontecido um acidente. – minha mãe começou após eu percebê-la abraçar a cintura de Eliana e a puxar para trás, me observando por cima do ombro de minha irmã. Só então percebi que sua reação não era exatamente por causa do sangue: considerando que ela visitou Rav, a cidade Lobisomem que fica na ilha de Marajó pouco antes de casar com meu pai, por um mês, para complementar sua formação em História das Raças, deve ter se acostumado com esse tipo de cena. Ela estava era preocupada com o que demonstrava que eu tinha rachado a cabeça mais cedo. – Que que você andou aprontando, mocinho?

Ouvi Luís abafar o riso do meu lado, e o xinguei mentalmente, embora não o culpasse: o tom meio acusador de minha mãe realmente dava vontade de rir.

Desde que não fosse com você, é claro.

- Foi durante a aula para aprender a controlar a transformação. – propositalmente deixei de fora a parte sobre o professor psicótico, tanto porque Eliana não merecia ouvir esse tipo de coisa e ficar preocupada comigo, tanto por saber que minha mãe tentaria vir para Fenris Fenrir, mesmo que ilegalmente, para armar o pior barraco possível.

Isabel podia ser a humana mais calma do mundo na maior parte do tempo, desde que você não mexesse comigo, Eliana, meu pai ou qualquer outra pessoa da família; fazer isso era pedir pra ela transformar sua vida no nono círculo do inferno.

Enfim. Minha mãe me conhecia, e ela semicerrou os olhos, desconfiada de que eu não contara tudo; entretanto, antes que ela pudesse perguntar o que eu estava escondendo, Luís se enfiou na minha frente, me empurrando pra trás e quase fazendo a cadeira despencar comigo junto. Provavelmente a intenção era boa – me salvar de ter de entrar em detalhes –, mas ele estava praticamente sentando em cima de mim para conseguir olhar na tela e conversar com as duas mulheres mais próximas que já tive a vida inteira.

- Então você é Eliana! Amadeus falou montes sobre você!

- Não falei não! – resmunguei, tentando empurrar o Sonnenblume com o braço bom, sem sucesso. E, de fato, eu não falara sobre Eliana para ele.

- Você fala dormindo. Resmungou pra caramba sobre ela enquanto tava na enfermaria e noite passada. – ele deu de ombros, e desisti de empurrá-lo para longe, me contentando em empurrar apenas um pouco e dividir o espaço com ele.

- Eu não falo dormindo!

- Fala sim. – afundei na cadeira quando Isabel e Eliana falaram ao mesmo tempo.

Como assim, eu falo dormindo e elas nunca me avisaram? Tipo... Sacanagem.

Isso explica como Isabel descobria facilmente minhas traquinagens infantis...

Ao fundo, a fera se matava de rir com a minha situação.



Eu e Luís conversamos quase todo o almoço com minha mãe e Eliana enquanto terminávamos de comer; ou melhor, eles conversaram: apenas tentei me defender debilmente das histórias vergonhosas sobre mim que minha mãe insistia em contar e que minha irmã caçula complementava alegremente, alegando que meu colega de quarto devia saber com que tipo de pessoa estava lidando. Em determinado momento, eu queria apenas que Ageu aparecesse e terminasse o que começara: ouvir o Sonnenblume rindo até quase literalmente cair da cadeira e outros Lobisomens sentados próximos darem risinhos discretos – ou não – não estava ajudando.

Felizmente eu tenho um veterano legal, e quando ele se despediu das duas, ele me levou até outro ponto do refeitório de onde vinha uma infinidade de risadas, às quais nós dois nos juntamos, mesmo a fera, frequentemente dando pitacos em meio ao riso: Davi e Larissa, sentados um de frente pro outro, mas quase sumindo debaixo da mesa de tanto que tinham escorregado pelas cadeiras, ela com o rosto tão vermelho que parecia que não existia pele sobre a carne da face; as mães de ambos estavam sentadas lado a lado na tela que aparecia na mesa, os veteranos de ambos ao lado deles, rindo sem parar das histórias vergonhosas que as duas contavam sobre os próximos Alfas.

- Explique. Isso não é natural, explique. – pedi para Luís em meio aos risos provocados por uma história particularmente engraçada sobre Larissa esquecer Davi amarrado de cabeça pra baixo no meio da floresta quando tinham cerca de oito anos por uma noite inteira.

Luís respirou fundo, tentando parar de rir e se endireitar.

- Tradição Lobisomem. As mães ou os pais contam as histórias mais vergonhosas sobre os filhos no segundo dia dele depois de acordar do coma da primeira Transformação, no momento em que mais tem pessoas perto dele. – ele riu de novo sobre algo que a mãe de Davi falou que fez Larissa se encolher mais ainda. – Fiquei surpreso por sua mãe conhecer a tradição... Queria que você falasse com ela antes justamente pra poder contar pra ela.

Soquei o braço dele, meio sem fôlego. Filho da mãe conspirador.

Ainda assim, eu não conseguia parar de rir da história de que Davi colocara um escorpião gigante no saco de dormir de Larissa enquanto ela dormia, em vingança a noite de cabeça pra baixo, antes de acordá-la; a descrição vívida que a mãe da Asimí fez dos gritos era realmente hilária.

- Ela viveu um mês em Rav... Deve ter aprendido lá... Ou o Major contou pra ela através da mensagem que ela disse que ele enviou. – consegui resmungar, tentando parar de rir. – Mas qual o objetivo, Luís?

- Algo sobre ser possível conhecer um Lobisomem melhor se você souber o que ele fez antes da transformação. Não tenho certeza, ninguém lembra mais porque faz isso. – suspirando e regulando a respiração, ele então pegou meu braço bom e começou a me puxar para fora do refeitório. – Vamos. Você tem aula do nosso dialeto e depois luta corpo a corpo; Tyvan te proibiu de lutar por dois dias, mas você pode observar sem problemas.



A aula de dialeto Lobisomem, com o professor falando no derivado de norueguês arcaico e nos forçando a falar nessa língua, me deixou com dor de cabeça e implorando por misericórdia. O fato de, além de mim, ter apenas um casal de gêmeos mestiços com Totens na sala, só piorou a situação: os dois puxaram muito do pai/mãe Totem, mas sem controle algum, já que quando eles conversavam mentalmente, eu, infelizmente, também ouvia. A forma como a pele deles também parecia ondular dependendo da luz, sendo aparentemente substituída por escamas, couro espesso, penas ou placas dérmicas, só piorou a tal dor de cabeça e ainda me deu enjoo.

Tipo, até a fera estava reclamando de dor de cabeça. Até a fera.

Depois dessa, não queria nem conhecer um Totem puro. Pelo que Luís me falou ao ir me socorrer na sala, já que eu estava quase colocando tudo que tinha dentro de mim pra fora, que a sensação era ainda pior: a aparência deles aos nossos olhos mudavam por inteiro a cada poucos minutos, dependendo de como eles se movimentavam ou se a luz mudava. Não que eles realmente mudassem de forma, era apenas a forma como eles se sentiam ou movimentavam que influenciava em como nossos olhos os viam. É complicado explicar.

Então fiquei sentado num canto do salão usado como sala de aula para Combate Corpo a Corpo, já que Tyvan tinha me proibido de lutar até os ferimentos fecharem, apenas observando os outros Lobisomens lutarem entre si ferozmente, sem coreografia. Transformação e intenção real de matar estavam proibidas, mas todo o resto era permitido: não existia nada proibindo golpes na virilha, no caso dos homens, nem nos seios, no caso das mulheres; olho também estava ok, desde que não cegasse permanentemente, e nem esmagar a garganta ou quebrar o pescoço, mesmo que isso não implicasse diretamente em morte, caso a medula permanecesse intacta, mas ainda era arriscado; por isso, apenas simulações de ataques com esses efeitos eram feitos, para que quem recebesse pudesse descobrir e praticar como evita-los.

Mas perdi a conta de quantos ossos foram quebrados, seguidos de berros de dor e xingamentos ao responsável e então corrida pra enfermaria.

Todos lutavam contra todos. Novatos contra veteranos. Um Lobisomem contra dois, três ou mais. Não existia aquela coisa dos humanos de separar em diversos níveis de habilidade ou peso, nem de ser obrigatoriamente um contra um. A lei era aprender na prática, porque, se não aprendesse, morria quando estivesse em missão.

Apesar de ter apenas assistido, até que aprendi um bocado de coisa na teoria, só faltava prática; percebi inclusive que Davi, apesar de tudo, tinha um sério problema quanto a manter a guarda alta do lado esquerdo antes de chutar com o pé direito a lateral de com quem ele lutava. Já Larissa parecia ter problemas em se defender de mais de uma pessoa ao mesmo tempo, apesar de lutar de forma incrível quando apenas contra um. Ao menos foi o que percebi

Ao final de Combate Corpo a Corpo, Luís não apareceu, mas enviou uma mensagem dizendo que me encontraria no refeitório durante o jantar. Como consequência, eu tinha uma hora e meia totalmente livre antes da refeição.

O que eu fiz?

Sentei no refeitório vazio e continuei a estudar o dolorido dialeto Lobisomem...



Minha cabeça tinha voltado a doer meia hora antes de Luís aparecer, pelo simples fato de que conjugar verbos era enlouquecedor, e o Sonnenblume me encontrou com a testa na superfície fria da mesa, xingando quem quer que ainda não tinha decidido que o dialeto Lobisomem devia derivar do norueguês moderno, e não do arcaico.

- Amadeus? – a voz dele parecia preocupada; pudera, ele colocara a mão no meu ombro, me sacudira, e ainda assim, eu continuei inerte.

“Endireita essa coluna, cara.”

Só quando minha cabeça parar de doer...

“Para de frescura.”

Não to de frescura.

“Tá sim.”

Rosnei para a fera, interrompendo o diálogo.

E então um cheiro lindo e maravilhoso de carne, sangue, batata frita com ketchup e de suco de abacaxi com hortelã invadiu minhas narinas e me endireitei na hora, meu estômago subitamente implorando por comida.

Foi só eu liberar o espaço na mesa que Luís colocou uma das duas bandejas na minha frente.

- Comida sempre ajuda a passar a dor de cabeça de estudar línguas estrangeiras muito diferentes... – ele falou com um sorriso, jogando um monte de batata frita na boca.

Balancei a cabeça, e então avancei na carne, agradecendo pelos cozinheiros desse lugar: só de olhar tanta comida, minha dor de cabeça já estava passando.

- Qual a língua que te dá dor de cabeça? – perguntei entre uma mordida e outra, observando meu colega de quarto com atenção, assistindo como ele comia com calma a batata frita; os lábios dele ainda estavam meio puxados num sorriso, e os olhos dourado-claro estavam com um brilho estranho.

- Além da da Gwineve? – engasguei quando ele falou isso num tom de voz que achei malicioso.

Tipo...

Não vou contar o que se passou pela minha cabeça. Nem em um milhão de anos. Nem sob tortura. Afinal, depois dessa, estava claro que pelo menos alguns encontros esses dois já tiveram, o que não me surpreende de fato, não depois do aviso da fera sobre cheiro e tals.

Só espero que ele não invente de dar detalhes.

Odeio saber detalhes do tipo sobre a vida íntima dos outros. Já basta o que a minha mente fértil consegue imaginar com pouca informação. Tipo... Pra quê dividir esse tipo de coisa?

“Ué, qual o problema se pelo jeito ela fez...”

CALA A BOCA! Eu estou realmente tentando tirar essa imagem da minha cabeça!

A fera não parava de rir da minha reação, para o meu desespero.

- É, além da língua dela... – consegui cuspir depois de tossir loucamente tentando recuperar o fôlego.

O filho da mãe ainda não tinha perdido o sorrisinho. Parecia estar se divertindo com a minha reação.

- Dialeto Totem. É uma mistura muito confusa de diversos dialetos dos povos nativos das Américas... – os ombros dele caíram por um momento, e eu entendi o motivo.

Tipo...

Um monte de dialetos diferentes.

Unidos num dialeto só.

De uma forma que pelo jeito estava longe de ser homogênea.

Meu cérebro doeu só de imaginar, por isso dei outra mordida generosa na carne, sentindo o sangue escorrer por meu queixo, mas nem dei atenção. Estava mais preocupado com a expressão meio pensativa que o rosto de Luís assumira, com as sobrancelhas um pouco franzidas e os olhos longe, longe.

- Tudo bem, cara? – perguntei após um longo período de silêncio, em que eu já terminara com a carne e agora atacava a batata frita.

O Sonnenblume saltou na cadeira, delatando que, além de pensativo, estava distraído, o que me fez rir. Ele me olhou, as bochechas comicamente estufadas de comida como um ursinho de pelúcia, piscando com seus olhos naturalmente arregalados.

- Minha irmã caçula passou pela primeira Transformação... Ela já deve ter voltado à forma humana e chegado... – ele sorriu de leve, e só então percebi que havia algo de preocupação em seu olhar.

- Qual a idade dela?

- Quinze. – a resposta veio acompanhada de um sorriso leve e de algo de orgulho em seu tom de voz, apesar da preocupação no olhar.

- Você pode visitá-la? – ele balançou a cabeça em afirmativa. – Quer ir lá depois do jantar?

Ele soltou um suspiro que me pareceu de alívio. Provavelmente ele não estava à fim de ir sozinho, embora eu não entendesse porque...



A enfermaria estava vazia, apesar de todos os ossos quebrados em Combate Corpo a Corpo mais cedo; Tyvan e seus subordinados são habilidosos e rápidos para tratar qualquer coisa e liberar o paciente.

O Zuri mal-humorado resmungou de forma ininteligível quando nos viu, e então, maldizendo o que quer que fosse, nos guiou até um dos quartos; vendo de relance o prontuário na interface da porta, li o nome “Débora Dritte’blütenblatt Sonnenblume”. Imaginei que o nome do meio fosse o ramo do clã Sonnenblume ao qual ela e Luís pertenciam, como o sobrenome normal de um humano.

A irmã de Luís estava apagada na cama alta; como o irmão, era magra e coberta de músculos delgados, aparentemente da minha altura, talvez mais baixa. A pele tinha um bronzeado que falava de saúde e incapacidade de ficar quieta. O cabelo era liso, curto e repicado, de um tom de loiro amarelo que faziam parecer que havia uma coroa de ipês em torno da sua cabeça. E, como comigo, havia uma coleira de prata pendendo de seu pescoço.

“É uma criança. Tem quinze, mas é uma criança...” A fera não deixava de ter razão. Débora era magra, mas as feições o rosto ainda eram arredondadas como as de uma criança, com as bochechas cheias e o queixo mais fino. Tipo... Ela me lembrava muito Eliana. Ainda assim, seu cheiro, que me lembrava verniz, serragem e eucalipto, carregava força de um modo que me lembrava Davi.

Além dela, havia uma outra moça no quarto; mais especificamente, era a mulher que eu vira brigando no dia anterior. Uma Vosien, se eu me lembrava direito do que Luís me falara. Ela virou-se para nós quando entramos; seus olhos bicolores tinham algo de seriedade que me fizeram estremecer. E agora, mais próximo e sem ela estar ensopada de sangue, pude perceber que um cheiro similar ao de grama recém-aparada e de livro antigo vinha dela.

- Imaginei que você viria ainda hoje. – sua voz carregava um tom agudo, pausado por causa do sotaque que me fazia pensar, por alguma razão bizarra, num xilofone. Ela se virou para nós, as mãos cruzadas nas costas, e pude perceber que seu corpo esguio, apesar de possuir algumas curvas, era quase completamente reto, o que me surpreendeu.

Tipo, eu já tinha lido que as Ninfas da terra possuem uma beleza que se concentra mais no rosto, com os seios delas praticamente não desenvolvidos e a cintura praticamente inexistente, com as nádegas tão pouco evidentes quanto. Minha mãe as descrevera da seguinte forma: esguias como um galho.

Aquela garota com certeza era esguia como um galho.

Se alguém que é mestiça de Ninfa da terra já é assim, que dirá uma Ninfa em si...

- Bom saber que o Major escolheu você como veterana dela, Cris... – Luís falou enquanto se sentava do lado da irmã, sem olhar na direção da Vosien. – Joshua te falou como foi? Meus pais não deram muitos detalhes...

Cris deu de ombros, cruzando os braços. Olhei ao redor, sem saber direito o que eu estava fazendo ali. Era óbvio que eu estava sobrando na conversa.

- Foi uma transformação tranquila... – ela deu uma pausa, franzindo as sobrancelhas. – Quer dizer, tirando a parte que ela conseguiu arrombar a cela de contenção e subiu até o topo do centro militar de Rav... Afora isso, tudo normal. Ela não atacou ninguém, então, pode relaxar.

Senti meus olhos arregalarem. As celas de contenção dos Lobisomens são onde os indivíduos se trancam quando percebem os sinais da primeira transformação, antes dela ocorrer, assim evitam acidentes. São construções feitas pra aguentar um ataque nuclear em massa. Ao menos em teoria.

“Essa menina é forte...” ouvi a fera sussurrar, com um respeito novo por Débora na voz.

Ter arrombado uma cela de contenção não deixa dúvidas disso.

- Tem algo sobre ela que eu deva saber?

Opa.

Assunto pessoal. Melhor eu cair fora.

- Vou esperar lá fora. – mal falei isso e me aproximei da porta, que se abriu com um simples toque de mão, para minha surpresa, e sai, sem esperar uma resposta, o metal se fechando com um zumbido às minhas costas.

Olhei ao redor, e vi uma porta aberta. Minha curiosidade falou alto e a fera também, por isso andei na ponta dos pés – mesmo sabendo que meu cheiro me entregaria – até a abertura e espiei para dentro, ouvindo uma voz que conseguia ser séria e neutra ao mesmo tempo, enquanto tentava definir do que era o cheiro que tinha me alcançado, além do de Tyvan.

- Já falei que estou bem! – quem resmungara era um rapaz magrelo, embora um pouco mais alto que eu, pelo que me parecia, que estava sendo examinado – cutucado – por Tyvan. A pele era morena, um tom que me fazia pensar em árvores velhas, apesar da pele lisa. Um dos olhos era dourado-puro, como o meu, enquanto o outro era verde-outonal, lembrando Cris, mas ao invés de arredondados, eram mais estreitos, como asiáticos e nativo-americanos; hoje em dia, fora da Ásia, era um traço raro, normalmente encontrado nos Totens. Já o cabelo tinha uma cor de folhas secas no outono, e aliado ao fato de seu cabelo passar das orelhas, cobrindo um pouco os olhos, e ser totalmente rebelde, me fez pensar em folhas secas caindo.

Sem dúvida nenhuma ele era mestiço com Ninfa da terra; tive mais certeza ainda quando identifiquei seu cheiro como sendo de musgo, umidade e terra. Ele tinha mais cheiro de alguém com sangue de Ninfa que a Vosien veterana de Débora.

Ele virou os olhos bicolores na minha direção momentaneamente enquanto tentava afastar Tyvan, mas logo fingiu que eu não estava ali.

- Você acordou menos de vinte e quatro horas depois do fim da primeira transformação, Guilherme! Isso não é normal, ainda mais pra um mestiço! O veterano que o Major designou pra você nem voltou da missão ainda! – o mal-humorado parecia no limite com Guilherme; eu estava até mesmo ouvindo alguns rosnados da parte dele...

O mestiço resmungou algo e ficou quieto, deixando Tyvan continuar a examiná-lo, embora tudo pra mim parecesse normal. Nem as máquinas ligadas em Guilherme acusavam algo errado...



Não sei quanto tempo o Zuri ficou examinando o rapaz, só sei que quando ele resmungou que estava aparentemente tudo bem, dando alta, e saiu do quarto, me dando um olhar azedo, o sono estava quase me fazendo voltar pro quarto de Débora e avisar Luís que estava indo dormir.

Exato, nem ele tinha dado sinal de vida.

O mestiço, ainda deitado na cama, acenou pra eu entrar enquanto começava a tirar as agulhas e sensores.

Contorci um pouco a boca, pensando, antes de finalmente me aproximar e ajuda-lo com a parafernália de hospital.

- Minha mãe comentou sobre os rumores de um mestiço com humano aqui no Fenris Fenrir... – ele parou quando terminou com aquele monte de fios, seus olhos perfurando os meus; quase parecia que tentava ler minha mente.

Eu teria me preocupado seriamente com essa possibilidade se ele fosse mestiço com um Totem, e não com Ninfa.

Dei de ombros com sua declaração, me afastando dois passos e enfiando as mãos nos bolsos da calça, sem falar nada. Não tinha ideia de que, fora de Fenris Fenrir, minha existência se aproximava mais de um rumor não confirmado. Achava que estava longe disso, por causa do que Curupira dissera sobre Iara.

- O Major deve estar tomando cuidado com a divulgação sobre isso... Alguns clãs poderiam tentar algo contra sua família humana, afinal eles não estão exatamente protegidos pelos tratados dos clãs... – falou casualmente, enquanto testava se as pernas tinham força suficiente para permanecer de pé.

Sem nem perceber, um rosnado escapou da minha garganta. Só o pensamento de algo acontecendo com meus pais, ou pior, com Eliana, me fazia querer entregar as rédeas para a fera, se isso pudesse protegê-los.

“Se alguém encostar um dedo neles...”

Morre. Dolorosamente. Preferencialmente torturado antes.

“Que tal cobri-los de mel e acorrenta-los num lugar cheio de saúvas? Ou de formigas-cabeçudas?”

Ou tudo isso e marimbondos também.

Minha pacífica conversa sobre tortura utilizando o que a natureza tinha de melhor com a fera foi interrompida por uma risada baixa, que identifiquei como sendo de Guilherme.

Quando foquei de novo minha atenção nele, um sorriso leve e maroto quebrava as feições neutras de seu rosto.

- Aceita um conselho?

Dando de ombros, balancei a cabeça em afirmativa.

- Continue agindo assim.

Assim como? Feito um idiota que para pra conversar com o outro lado dele mesmo e ignora o resto ao redor?

Felizmente ou infelizmente, Deus sabe, não tive tempo de perguntar.

- Tem um buraco na minha barriga... Onde como? – a declaração não me surpreendeu: embora ele não tivesse as feições do rosto magras ou afundadas, algo nele ainda me fazia pensar na palavra “esfomeado”. Não tinha relação nem com os olhos estreitos, que nada revelavam, nem com os lábios grossos, muito menos com o rosto ovalado... Sei lá. Ele só passava a mensagem de fome.

- Não sei... Agora já pararam de servir o jantar, e meu veterano não falou nada sobre comer fora do horário das refeições... – realmente. Nem mesmo uma palavrinha sobre, e o besta aqui também não perguntou.

- Deve ter algo sobre no seu anel de identificação... Eles sempre colocam, pelo que ouvi. Seria estranho não ter como comer a qualquer momento num centro de treinamento Lobisomem. – ele apontou para o anel dourado-puro no dedo médio da minha mão esquerda, e só então percebi que ele não possuía um anel.

- Ué... Você não chegou com um anel de clã? – perguntei enquanto deslizava os dedos pelo teclado espectral que se estendera em meu braço, procurando algo sobre comida nas plantas do complexo.

- Não era certeza que eu me transformaria, então os Vosien não me deram um anel de identificação do clã, embora tenham um semi-preparado, pelo que meu pai me falou. – a resposta veio rápida, com ele mal respirando depois da minha pergunta.

- Então os laboratórios de tecnologia devem estar terminando de configurar ele. – semicerrei os olhos, caçando mais um pouco as informações, até finalmente achar que existia uma espécie de lanchonete no térreo daquele mesmo prédio. – Achei! Vou s... – Guilherme me interrompeu, cutucando meu braço para chamar a minha atenção, e então apontou com a outra mão para a parede perto da porta.

Uma tela de comunicação estava aberta, mostrando o rosto do Major. Ele parecia calmo, os lábios esticados discretamente, mas isso não me impediu de engolir em seco antes de me aproximar.

- Senhor. – ele balançou a mão, como quem diz para parar com formalidade.

Isso só me fez engolir em seco de novo. Nem mesmo a fera ousou dar algum palpite: eu quase podia ouvir sua respiração, pesada de ansiedade.

- Bom ver que você e Guilherme já se conheceram.  – Joshua pareceu se recostar contra a cadeira onde estava, o sorriso ainda presente. – Seu veterano só chega amanhã à tarde, rapaz. – notei com o canto do olho os ombros do mestiço caírem. – Amadeus, você pode levar Guilherme até Bernardo? Ele acabou de me informar que o anel de identificação dele já está quase pronto, falta só uma informação. – nesse ponto, ele deu uma piscada marota que fez um arrepio percorrer minha espinha ao entender que faltava descobrir qual a aptidão natural do mestiço. – O anel já tem registrado o seu quarto, Guilherme, então não precisa se preocupar.

- Posso, senhor. Ainda tenho um pouco de tempo livre. – respondi à pergunta com um leve tom de apreensão.

- Obrigado, rapaz. Ah, não precisa se preocupar com dinheiro, já avisei a lanchonete que o que você comer hoje é por minha conta, Guilherme.

”Dinheiro? Você lembra de Luís falar algo sobre ‘dinheiro’?”

Nem uma palavra. Tenho de xeretar tudo que tem no anel, aposto que tem algo explicando isso...

- Obrigado, senhor. – falamos ao mesmo tempo, e os dentes do Major apareceram.

- Não precisa avisar Luís. Já estou enviando uma mensagem para ele. – ele deu uma pausa, os olhos dourado-mel com um brilho estranho que me parecia ser uma pontada de orgulho enquanto nos observava. – Dispensados e bom-apetite.



Ben tinha feito festa quando Guilherme escolheu o próprio visor, uma coisa estranha que parecia uma espécie de “diadema” que ficava preso acima das sobrancelhas, de um lado um visor de acrílico, do outro um visor espectral surgia, como no meu. O Sonnenblume abraçou o mais novo membro dos Vosien pelos ombros e o levantou, provocando uma expressão confusa no rosto do Lobisomem mais novo.

Quando ele conseguiu se acalmar, explicou, como uma criança contando sobre o presente novo, que aquilo significava que Guilherme era um Estrategista e um Especialista em Bombas nato. Finalizou perguntando se o rapaz acreditava que teria aptidão para magia de cura, ao que recebeu um hesitante aceno afirmativo, e então gritou um “Uhu!”, seguido de “Aquele idiota perdeu a aposta!”.

Depois disso, enquanto Guilherme esvaziava a despensa da lanchonete, tentei imaginar se Ben também não tinha feito apostas sobre o que eu seria. Não cheguei a uma resolução definitiva.


E então nos separamos nos corredores do andar onde nossos quartos estavam. Luís já roncava quando cheguei, e não demorei pra estar dormindo feito uma pedra depois que me enfiei debaixo do lençol.

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